A arte de beber com os olhos

Já lá vai o tempo em que os rótulos dos vinhos portugueses davam vontade de fechar os olhos. Feios, datados, sem qualquer apelo estético ou intenção gráfica, era o espelho de uma indústria que, durante anos, olhou mais para dentro do que para fora da garrafa.
Em meados dos anos 90, quando comecei a estudar vinho, a situação era bem pior. Os vinhos, eram muitas vezes ótimos, mas os rótulos eram maioritariamente maus! Sobretudo em regiões como a Bairrada ou o Dão, onde o classicismo se confundia com desleixo visual. E, no entanto, o que lá estava dentro tinha tanto para oferecer… A entrada de Portugal na Comunidade Europeia, em 1986, trouxe-nos mais do que fundos e regulamentações trouxe-nos uma revolução vitivinícola: novas práticas na vinha, novos enólogos, novas ideias. E, com o tempo, também uma nova sensibilidade estética. O vinho começou a ‘olhar-se ao espelho’.
Um dos primeiros a entender que o rótulo também é parte da narrativa foi o Esporão. Ainda me lembro da surpresa e do entusiasmo, ao ver rótulos pintados por artistas, ano após ano, cada um com uma identidade própria. Foi uma lufada de ar fresco. E não era só marketing, era arte e um novo propósito cultural. Nessa época – e não vamos mais longe – ao atravessar a fronteira, percebi que nesse campo, Espanha levava-nos pelo menos uma década de avanço. Encontrei vinhos com rótulos arrojados, conceptuais, belíssimos. Alguns verdadeiros objetos de coleccionador. E isto, repare-se, sem entrarmos sequer na discussão da qualidade do vinho. Falamos apenas de imagem, que também começou a contar.
Hoje, felizmente, os rótulos portugueses já contam histórias. Começam a provocar e a emocionar. Não são só ‘etiquetas’ com o nome do vinho mas uma forma de contar uma história e, muitas vezes, é isso que nos faz escolher um vinho em detrimento de outro na garrafeira ou no supermercado. E quem fala do vinho fala das embalagens. Das mais simples, às mais inovadoras, as caixas (entre outros suportes de comunicação que também vão surgindo) contribuem para uma melhor percepção do conjunto.
É por isso que faz todo o sentido ter surgido finalmente em Portugal um concurso como o Mutante Awards Design at Wine – uma parceria entre a revista Mutante e a Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa – que veio ajudar a evidenciar o trabalho que tem sido feito pelos vários profissionais das artes nos rótulos de vinho. (na foto de entrada o designer da Mutante João Rato, e Susana Parreira, ambos investigadores do CIEba — Centro de Investigação e Estudos em Belas-Artes). Estes rótulos têm hoje um potencial de comunicação capaz de construir ligações entre produtores e consumidores a um nível superior. Da informação técnica à construção de narrativas, como identificador ou como elo de ligação emocional, o design do rótulo contém em si todas as oportunidades para afirmar um vinho em diversos contextos de consumo.
Nesta que é a segunda edição houve mais de uma centena de garrafas a concurso, provenientes de todas as regiões de Portugal, incluindo as Ilhas, tendo sido premiados rótulos em várias categorias (Espumante & Pet-Nat, Branco, Curtimenta, Rosado, Clarete & Palhete, Tinto, Licoroso e Aguardente). Participaram pequenos e grandes produtores ateliers de design especializados agências generalistas, designers independentes, designers consagrados e até novos talentos. A escolha foi difícil mas lá teve de ser. Deixo-vos em baixo as minhas categorias preferidas com o meu comentário e a lista dos vencedores completa que podem ver AQUI , no site da Mutante.
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CATEGORIA: Rosados
VINHO Hommage Aragonez Rosé 2023 + CAIXA
PRODUTOR Casa Trévidic
DESIGN label

A primeira impressão conta e, no caso desta caixa conta mesmo muito, pois complementa-se com os vinhos que lá tem dentro. Com um formato quadrangular, branco imaculado e um design de linhas simples, a caixa conquista à primeira vista. As letras em relevo dão-lhe um toque sofisticado, ‘clean’ e estilizado que se destaca em qualquer prateleira ou mesa.
Mas o impacto visual não se fica pela caixa. As garrafas, com um formato original, desafiam a norma e acrescentam personalidade ao conjunto. As cores cuidadosamente escolhidas para distinguir os diferentes vinhos tornam cada referência imediatamente reconhecível, sem necessidade de palavras. E o rosé vencedor está lá, igual aos outros no formato da garrafa mas diferente na cor, encaixando muito bem no conjunto e valorizando a apresentação. O conceito gráfico global é forte e coerente, fazendo com que o design faça parte da experiência.
CATEGORIA: Tintos
VINHO: Arché Tinto 2022 + CAIXA
PRODUTOR: Herdade do Sobroso
DESIGN: Rita Rivotti

Este vinho é uma afirmação estética desde o primeiro olhar. A sua garrafa de formato clássico transmite tradição e seriedade, mas é a caixa inovadora que surpreende e eleva o conjunto a outro patamar.
Composta por dois retângulos que se abrem sobre um triângulo central, a embalagem revela-se como um verdadeiro objeto de design. Este mecanismo valoriza a garrafa e cria um jogo visual inesperado, onde o clássico e o contemporâneo dialogam em perfeita harmonia. O resultado é uma caixa belíssima, criativa e diferenciadora, ‘avant-garde’ que se destaca sem ser excessiva.
CATEGORIA: Aguardentes
VINHO Aguardente de Medronho + CAIXA
PRODUTOR Herdade Aldeia de Cima
DESIGN Eduardo Aires Studio

Não é vinho mas o cuidado pela estéctica alargou-se à aguardente. Este é um exemplo refinado de como o design pode refletir com elegância a identidade de um território. A garrafa, de linhas puras e perfil minimalista, remete a um objeto quase laboratorial, onde a simplicidade é cuidadosamente pensada. O rótulo branco, com relevo subtil, evoca a silhueta de uma casa alentejana, homenageando de forma poética a Serra do Mendro, origem desta aguardente. A escolha da cor amarela vibrante, aplicada numa fita que desce da rolha de madeira natural e num pequeno detalhe gráfico que simula a porta da casa, introduz um ponto de calor e modernidade que contrasta com a sobriedade do restante conjunto. Já a embalagem exterior é uma verdadeira peça de design, reinterpretando a arquitetura vernacular alentejana com o formato de uma casa de telhado em duas águas. Esta solução transforma a caixa num objeto escultural que comunica a origem do produto.
CATEGORIA: Colecções
VINHO: Novas Rotas
PRODUTOR: Quinta da Carregosa
DESIGN: Miguel Freitas / Rui Ricardo

Estes rótulos são um verdadeiro exercício de criatividade e storytelling visual. Cada um deles ilustra uma pequena história ou cena de viagem, remetendo a diferentes meios de transporte — moto, jipe, comboio, barco e carro clássico — todos inseridos nas bonitas paisagens do Douro. O estilo gráfico tem um forte apelo vintage, com cores saturadas, traços ilustrados à mão e composições que lembram cartazes de filmes antigos ou postais de viagem dos anos 50 e 60.
O design aposta numa linguagem visual emocional, nostálgica e ao mesmo tempo divertida, criando uma ligação imediata com o consumidor. Há uma coerência entre os rótulos, sem perder a individualidade, cada vinho tem a sua “rota”, a sua aventura. Este tipo de abordagem diferencia a marca nas prateleiras e desperta curiosidade tanto em consumidores habituais como em novos consumidores do mundo do vinho.
CATEGORIA: Colecções
VINHO: Trava-Línguas
PRODUTOR: Poças
DESIGN: Julien Posture e Mariana Malhão

Esta colecção tem um design contemporâneo e irreverente, alinhado com um espírito jovem e ousado. Os rótulos são pequenas obras de arte ilustradas, cada um com uma abordagem gráfica distinta, mas unidos por uma estética coesa e lúdica. As figuras — animais estilizados, personagens humanas e composições abstratas — remetem ao universo dos trava-línguas, com um toque quase surrealista e altamente expressivo.
O uso de cores chamativas e formas geométricas cria um forte impacto visual que foge ao convencional no mundo do vinho, tradicionalmente mais sóbrio. É uma coleção que traz humor, arte e um conceito gráfico sofisticado, posicionando a Poças como uma marca que quer surpreender no mercado.
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