Artigo

Vinhos de paciência

Santa Comba Dão é mais conhecida por ter dado um ditador ao país, do que por dar grandes vinhos à mesa. Mas há quem queira inverter essa narrativa, trocando a memória política pela enologia e pela lentidão com que o vinho se faz e se afina. É o caso de Manuel Pereira de Melo, que encontrou numa pequena quinta, com menos de três hectares – dos quais apenas dois são de vinha – o espaço ideal para lançar um projeto pessoal e de escala reduzida. A ideia não é crescer. É esperar, guardar e lançar vinhos que valem pela precisão e pela qualidade. Contra a corrente da produção em massa, o produtor aposta na diferença que o tempo traz.

Do lado paterno, todas as origens de Manuel Pereira de Melo são beirãs. Os bisavós eram de Fornos de Algodres, terra onde a família detinha algumas propriedades, vendidas entretanto, como tantas outras, ao longo das décadas. Assim, a ida para Santa Comba Dão deveu-se a uma das suas tias, que casou com um homem desta vila (hoje cidade). O casal, muito acarinhado pela população, tinham sempre a casa cheia e por isso mantinham sempre uma sala com mesa posta e farta para receber quem por lá passasse. Tanto podia ser alguém mais importante, como o pobre da vila, todos eram recebidos por igual.

É dessa casa cheia e generosa que Manuel guarda as melhores memórias de infância. «Os meus tios eram quase uma extensão dos meus pais, e por isso marcaram-me profundamente», diz com saudade. Pelos locais de referência e pelos afectos, Manuel não duvidou em regressar à terra onde sempre foi feliz, mesmo já adulto, a viver e a trabalhar no Porto.

Não sendo herdeiro dos tios, comprou uma quinta em 1973 e começou por construir uma casa, que terminou em 1978. Depois é que plantou a vinha e construiu a adega. «Sempre estive ligado ao vinho na minha vida profissional. Na época trabalhava como responsável de relações externas na Borges, no Porto, e foi nesse contexto que fiz amizade com o enólogo Anselmo Mendes. Foi ele quem me convenceu a iniciar o projecto, disse-me que era um sítio muito interessante para fazer vinhos do dão à moda antiga. Eu estava céptico pois há sub-regiões no Dão mais afamadas para produzir vinho mas ele deu-me confiança e eu deixei-me convencer e segui em frente», conta Manuel. 

Manuel Pereira de Melo comprou uma quinta de três hectares e plantou dois de vinha para produzir vinhos de edição limitada. Assim nasceu a marca Primado.
A gama Primado é composta por três tintos, um rosé e um branco



A ‘quintinha’, como lhe chama, não chega a três hectares, dos quais dois são de vinha, plantada em 1990, com castas típicas da região: Touriga Nacional, Tinta Roriz, Alfrocheiro, Tinta Pinheira e, mais recentemente, Encruzado. Em 2002 construiu-se então a adega e, dois anos depois, em 2004, nasceu a primeira colheita do Primado Tinto, que acabaria por ser lançada apenas em 2008. «Este é um projeto de paciência. É preciso realmente ter muita paixão, e alguma dose de obstinação, para fazer vinho assim. Produzir e esperar que esteja pronto para sair para o marcado», afirma, convicto.

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Entretanto, juntou-se ao projeto a enóloga Patrícia Santos (2006) pupila de Anselmo Mendes, cuja entrada coincidiu com a produção do primeiro vinho rosé. Foi com ela que também surgiu o único branco do portfolio, da casta Encruzado, com a primeira colheita lançada em 2017. «É um Encruzado sem madeira que vem aumentar a oferta da gama e dar destaque a esta casta que é rainha do Dão», afirma Patrícia Santos.  Segundo explica a enóloga, «os  vinhos são feitos em edições muito limitadas, com atenção ao detalhe e foco num público exigente». Por essa razão, «só estão disponíveis em espaços de prestígio, cuidadosamente selecionados pelo seu posicionamento e qualidade, razão pela qual marcam presença em várias cartas de restaurantes Michelin», completa o produtor.



Vinhos implantados num terroir especial

O terroir de Santa Comba Dão revela características muito próprias dentro da região. Situada a cerca de 200 metros de altitude e próxima da barragem da Aguieira, esta é uma zona do Dão mais húmida, com Verões chuvosos. As manhãs são frequentemente cobertas por neblina até ao final da manhã, o que contribui para uma maturação mais lenta e equilibrada das uvas. Por isso mesmo, as vindimas tendem a acontecer mais tarde, permitindo colheitas com maior frescura e complexidade. O facto de ter passado por várias empresas de referência do sector do vinho, e de ter acumulado experiência, ajudou também Manuel Pereira de Melo na área da distribuição e comercialização dos seus vinhos.  Hoje o portfólio dos seus ‘Primado’ é composto por três tintos um rosé e um branco, e é ele o faz tudo da pequena empresa, apoiado sempre pela mulher Inês.

A prova dos vinhos, muito focada na qualidade, incluíram os tintos Primado Family Cellar Edition 2013,  Primado 2015 e Primado SB 2022 (este último identificado pelas iniciais das filhas de Manuel, Sofia e Benedita). Completaram a seleção o Primado Rosé 2023 e o branco Primado Encruzado 2023.

Os dois primeiros tintos (de 2013 e 2015), revelaram estilos próximos, assentes na elegância e estrutura que apontam para uma boa capacidade de evolução em garrafa. O 2013 destacou-se pela harmonia e pelo equilíbrio entre fruta, corpo, taninos e acidez, apresentando-se como um vinho mais integrado e polido. Já o 2015 mostrou-se mais direto e expressivo, notando-se uma fase menos estabilizada mas com traços promissores de evolução. O último tinto, o Primado SB 2022, feito exclusivamente de Tinta Roriz, apresentou uma abordagem distinta. Com menor densidade e estrutura, apostou numa leitura mais leve da casta, com destaque para a frescura e acessibilidade, sem perder definição.

No domínio dos rosés, o Primado 2023 optou por um registo cromático mais carregado, afastando-se da tendência atual dos tons pálidos. Na prova, revelou fruta limpa e bem definida, com uma acidez firme que lhe dá estrutura e capacidade gastronómica.

Por fim, o Encruzado 2023, marcado pela contenção, apresentou um perfil menos aromático e vegetal do que o habitual na casta, certamente devido ao terroir onde está implantada. A acidez viva, contudo, conferiu-lhe a tensão e carácter habituais nesta variedade.

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A prova terminou em grande estilo com um vinho muito antigo do Dão, um branco especial de 1917, que Manuel herdou do antigo proprietário, guardo junto com outros vinhos antigos na sua cave. Não é um branco da marca Primado mas foi produzido na mesma quinta, o que lhe conferiu ainda mais simbolismo. Um vinho que surpreendeu todos os presentes pela sua complexidade aromática, frescura e equilíbrio notável, mesmo após mais de um século. Uma prova rara que evidenciou o extraordinário potencial de longevidade dos vinhos do Dão, deixando uma forte impressão e um profundo respeito pela história vitivinícola da região.

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