Crónica

Renegada pelos amigos, deserdada pela familia

A verdade é dura mas tem de ser dita. Nem todas as pessoas que gostamos, sejam elas do nosso círculo de amigos ou família, gostam de vinho. Ou nem sempre aqueles que gostam de vinho gostam de todos os vinhos. Pior: há ainda aqueles que dizem gostar de vinho, dizem-se entendidos na matéria, mas quando lhe colocamos um bom vinho à frente, não o sabem apreciar.  

A história que hoje vos conto ilustra o dia em que percebi que não se deve desperdiçar vinho! Ou seja, mais vale adequar o vinho à pessoa que o vai beber, do que oferecer o melhor que temos em casa a alguém que não o sabe apreciar.

Tinha vinte e poucos anos, ainda a descobrir o mundo do vinho, e já fazia na minha primeira casa jantares de harmonização a amigos e familiares para testar os meus conhecimentos. Numa dessas ocasiões, a cozinhar para um pequeno grupo de tios supostamente conhecedores, fiz um prato principal de carne (chambão em molho de tomate e cenoura e espuma de batata), e trouxe para a mesa duas garrafas de um vinho tinto topo de gama de um produtor clássico alentejano, que todos apreciaram muito. Conversa puxa conversa, copo puxa outro copo, o tinto acabou e eu já não tinha mais garrafas daquelas para colocar na mesa. Fui então à cave e reparei numa garrafa de tinto do mesmo produtor, mas de gama intermédia, que acabou por me salvar da situação. Ao regressar à mesa, avisei de imediato que aquele vinho era do mesmo produtor, um tinto de qualidade, mas era diferente, sem especificar propriamente a diferença. Só que, em vez de perceberem que eu estava a avisá-los de que o vinho não era tão expressivo e complexo como o anterior, perceberam exactamente o contrário e, mal o provaram, todos desataram a elogiar o tinto dizendo que eu tinha guardado o melhor para o fim. O outro era excelente, mas aquele sim, era fantástico, tinha valido a pena esperar por aquela surpresa. Eu, claro, fiquei com um sorriso amarelo e não disse mais nada!

Acordei para a vida! Tinha acabado de dar o meu rico vinho, de um produtor XPTO, de edição limitada, garrafas numeradas, que só saía nos melhores anos, carííííííssimo, a pessoas que, por muito amadas que fossem, não lhe souberam dar o devido valor! Como podia um vinho mais redondo e suave, mas com menos complexidade, ter ficado no pódio dos elogios?

Pois é. Queremos sempre dar o melhor a quem gostamos, mas a verdade é que nem sempre o sabem apreciar. E o que fazer nestas ocasiões?  Sei bem que corro o risco de perder alguns amigos e de ser renegada por meia família, mas não há crime maior do que dar um vinho fantástico a quem não o compreende. Devemos então dar vinhos maus? Obviamente que não. Os nossos amigos e familiares menos conhecedores merecem vinho de qualidade, mas um vinho menos ‘complicado’ que até lhes vai dar maior prazer. Menos complexo, mais redondo, mais fácil para o paladar. E no final, ainda vão agradecer.

Resumindo: quando as pessoas não estão preparadas para beber um bom vinho não lhos devemos dar. O paladar é algo que evolui e precisa de tempo para entender vinhos especiais. No entanto, caso não entendam o vinho mas tenham curiosidade de aprender e evoluir, então sim, temos uma boa desculpa para cometer desvarios, dar o melhor que temos em casa e entusiasmar quem quer ir mais além. Mas se assim não for, mais vale guardar o vinho um pouco mais tempo na garrafeira e esperar para o abrir numa próxima oportunidade com quem lhe sabe dar valor. Uma medida que certamente vos vai ajudar a ser mais poupadinhos e a guardar os melhores vinhos para as ocasiões certas. Quem é amiga, quem é?