O tempo dos brancos

Em 2008, fiz uma das provas mais memoráveis da minha carreira. Teve lugar no Centro de Estudos Vitivinícolas do Dão (CEVD), em Nelas, onde estiveram em prova inúmeros vinhos brancos antigos, todos em excelentes condições, algo que há décadas era muito raro em Portugal. Isso só foi possível graças ao trabalho visionário e meticuloso do Engenheiro José António Vilhena, uma figura central na história da viticultura do Dão e um dos mais respeitados especialistas do sector em Portugal. Durante décadas à frente do CEVD, em Nelas, teve um papel determinante na investigação, preservação e valorização das castas autóctones da região, com especial destaque para a Encruzado, nos brancos, e a Touriga Nacional, nos tintos.
Vilhena destacou-se também por ter iniciado e mantido uma notável garrafeira histórica, onde foram cuidadosamente guardados vinhos de colheitas antigas, muitos deles brancos, num tempo em que praticamente ninguém o fazia. Essa colecção, que resistiu ao tempo graças ao seu rigor e visão, é hoje um verdadeiro tesouro do património vínico nacional.
Esse legado continua vivo pelas mãos da engenheira Vanda Pedrosa, sua colaboradora de longa data e actual guardiã desta memória líquida, que nos concedeu o privilégio de provar essas preciosidades. Uma experiência que demonstrou, com clareza, o potencial de longevidade dos brancos portugueses.
Mas voltemos à prova (e recorde-se novamente que estávamos em 2008). Nos copos, desfilaram brancos produzidos a partir da casta Encruzado, com colheitas de 1959, 1964, 1974, 1980 e 1992. A Encruzado é, ainda hoje, uma das castas brancas portuguesas que melhor envelhece. Equilibrada ao nível do açúcar e da acidez, permite elaborar vinhos de grande frescura e com uma longevidade invulgar. Muito procurada, tanto para vinhos monovarietais como para lotes, é uma das grandes castas brancas do Dão (e mais além, de Portugal).
Das relíquias em prova, a colheita de 1964 foi, sem dúvida, a que mais se destacou. De cor amarelo torrado acentuado, apresentava um aroma intenso e resinoso, com notas de frutos secos e um toque de erva seca final. Na boca, mostrou-se cheio e amanteigado, com uma acidez notavelmente equilibrada. Quarenta e quatro anos depois, este vinho evoluiu de forma surpreendente e elegante. Os outros brancos, também com os seus aromas terciários (de envelhecimento), vivos e cheios de sabor, não ficaram muito atrás, mas nenhum conseguiu igualar o impacto da colheita de 1964. Uma verdadeira experiência sensorial memorável, capaz de conquistar qualquer consumidor esclarecido.
Esta pequena história serve para ilustrar o quão apaixonantes podem ser os brancos portugueses. Não são só os vinhos Chardonnay da Borgonha ou os Rieslings do Mosel que merecem destaque, entre outros no mundo. Também por cá produzimos brancos incríveis, e estes vinhos antigos são a prova viva disso. Ainda mais surpreendente é o facto de terem sido produzidos numa época em que os brancos eram feitos para consumo rápido. E, nessa altura, não havia os cuidados na vinha e na adega que existem hoje, nem cuidados especiais de guarda. Mesmo assim, resistiram ao tempo com dignidade e alma.
Aproveito a boleia dos vinhos velhos de Encruzado para dizer que os brancos portugueses, de um modo geral, têm dado cartas nos últimos anos, não só no Dão, mas noutras regiões e com outras castas. Assim de repente, basta lembrar o caso da Arinto ou da Alvarinho, que têm revelado um potencial extraordinário, tanto em Portugal como além-fronteiras.
Desde meados da década de 1980, assistimos a uma verdadeira revolução. A modernização das adegas, a melhoria das práticas na vinha e o regresso de uma nova geração de enólogos, formados e experientes além-fronteiras, trouxeram uma nova vitalidade à produção nacional. Os brancos começaram, então, a conquistar o paladar dos consumidores, com uma qualidade aromática e estrutural até então rara no país.
Em pouco tempo, muitas coisas mudaram. Primeiro, vieram os brancos exuberantes, muito aromáticos, influenciados pelas tendências internacionais. Depois, com o nariz cansado de tanto aroma e pouca profundidade, o mercado virou-se para os vinhos com madeira, mais envolventes, mais gastronómicos. Houve até excessos: brancos onde a madeira dominava em demasia, tanto no nariz como na boca, uma tendência que acabou por evoluir para a utilização de barricas usadas, para não marcar tanto o vinho.
Hoje, felizmente, parece que os produtores encontraram o equilíbrio tão desejado. Nos brancos mais leves ou nos mais estruturados, gastronómicos, já não é só a fruta ou a madeira que conta. É sobretudo a genuinidade das castas, a frescura, a elegância e a harmonia entre todos os elementos. E isso sente-se, cada vez mais, nos nossos copos. Sorte a nossa!
