Crónica

O branco que esperou mais de um século

Há países cuja reputação em vinhos brancos de longa guarda está solidamente estabelecida como, por exemplo, a França ou a Alemanha. Nestes países, o tempo é cúmplice para obter elegância e complexidade. Contudo, também os temos por cá, embora menos falados, e o Dão é a região em Portugal que dá a conhecer alguns dos mais surpreendentes. Parte dessa memória líquida repousa no Centro de Estudos Vitivinícolas do Dão, em Nelas, onde ainda hoje se encontram vinhos velhos guardados em silêncio. A outra parte permanece nas mãos discretas de alguns produtores.

Foi precisamente no Dão que esta semana provei aquele que é, até hoje, o mais antigo vinho branco da região que tive oportunidade de provar. O ano? 1917 ! Pertence à coleção pessoal de Manuel Pereira de Melo, proprietário de uma quinta em Santa Comba Dão (vou escrever sobre os seus vinhos em breve), cuja história deste e de outros vinhos remonta a um acaso curioso.

Quando comprou a propriedade, o antigo dono entregou-lhe, quase como quem limpa a casa, algumas garrafas esquecidas num armário. Estavam de pé, encostadas umas às outras, garrafas escuras e antigas, sem pretensões estéticas, reaproveitadas, algumas delas utilizadas anteriormente para vinho do Porto. Não foram guardadas a temperatura controlada, nem tinham rótulo impresso (só um papel colado e umas palavras escritas com aquela caligrafia desenhada dos nossos avós). Não foram certamente feitos para impressionar ou durar.

O mais certo é que tivessem virado vinagre. Só que não! Assim que Manuel e a sua enóloga Patrícia Santos abriram algumas dessas garrafas, perceberam que tinham ali um caso sério. Os vinhos estavam obviamente envelhecidos, mas com boa oxidação.  A cor ganhou tons alaranjados, e o aroma e paladar uma elegância oxidativa. Vinhos que  orgulhosamente resistiram. Uma outra dimensão!

É no seguimento desta história que me calhou a sorte – e a generosidade do produtor – de provar um destes vinhos que não me sairá mais da memória. O branco, de 1917 (de Ribeira Dão, segundo o rótulo), revelou no aroma os esperados frutos secos e especiaria, e notas intensas a lembrar vinho do Porto. Na boca uma estrutura e acidez presente, e ainda com alguma energia, apesar da velhinha idade.   

O mais incrível no meio disto tudo é como um vinho branco conseguiu resistir tanto tempo. É comovente pensar que alguém, há mais de 100 anos, fez aquele vinho, e que hoje nos chega intacto. É um testemunho silencioso que nos liga ao passado, revelando a impressionante longevidade dos brancos do Dão e uma parte menos visível da história vitivinícola portuguesa. Aquela que sobrevive, esquecida, em caves e armários antigos um pouco por todo o país.

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