A sabedoria do tempo

Se não há vinhos perfeitos, este deixa-nos na dúvida. Depois de mais de uma década guardado em silêncio, o tinto Casa da Passarella Vindima 2014 – a terceira colheita do vinho de topo deste produtor – chega finalmente ao mercado. Se as anteriores edições já eram memoráveis, esta não fica atrás. Provavelmente, o de maior profundidade. É um vinho que se recusa a seguir o compasso apressado da indústria, e que afirma, com firmeza e elegância, que o tempo ainda é o melhor enólogo.
Depois de mais de uma década de envelhecimento, a Casa da Passarella revelou ao público e à crítica especializada a nova colheita do seu tinto de topo: o Vindima 2014. A prova de vinhos serviu também para relembrar o trabalho meticuloso que tem vindo a ser feito nesta casa centenária, e para sublinhar o perfil clássico que ainda hoje caracteriza alguns dos melhores vinhos da região.
O ano de 2014 foi marcado por extremos climáticos: calor anómalo em Abril e Maio e fortes chuvas em Setembro (o mais chuvoso desde 1931). Mas, apesar das atipicidades, acabou por resultar num grande vinho. Produzido a partir de vinhas velhas com mais de 80 anos, onde coexistem castas como a Baga, Touriga Nacional, Alvarelhão, Tinta Pinheira, Jaen, Tinta Carvalha, entre outras, as uvas foram colhidas à mão, colocadas em lagar de granito e pisadas de forma tradicional. A fermentação alcoólica foi espontânea e teve um posterior estágio em tonéis de madeira durante três invernos. «Este processo é muito importante para nós porque os invernos rigorosos da Serra da Estrela, com temperaturas muito baixas, vão permitir a estabilização deste vinho de forma totalmente natural, sem qualquer tipo de filtração» diz Paulo Nunes, o enólogo da Casa da Passarella. Seguiu-se uma longa guarda em garrafa, onde repousou até agora.
Para o enólogo este é um vinho que «não nasceu para seguir o mercado, mas para resistir ao tempo». A sua abordagem, contida e deliberada, confia mais na geologia, no clima e na história da vinha do que na intervenção em adega. «É um legado de séculos que queremos estudar e perceber cada vez mais, e homenagear fazendo um trabalho de excelência. Na adega, acredito que o grande desafio está em fazer menos, acabando por fazer melhor», afirmou, sublinhando que o trabalho se faz na vinha e que há decisões que demoram anos, ou até décadas, a revelar os seus efeitos.
As parcelas das vinhas centenárias, plantadas no solo granítico de Lagarinhos, serviram de base para o que descreve como uma «viagem no tempo», permitindo reencontrar práticas antigas e chegar àquele ‘blend natural’ que confere equilíbrio ao vinho, sem fórmulas pré-definidas. «A fermentação foi interrompida antes do fim, de forma a preservar o equilíbrio tartárico, e o estágio natural em garrafa, sem filtragem, contribuiu para a sua estrutura final. E o processo de (re) arrolhamento, feito garrafa a garrafa, revela ainda a minúcia com que o projeto é tratado», explica ainda o enólogo.
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De aroma mineral, frutos pretos silvestres e notas balsâmicas, este tinto revela um paladar profundo, estruturado, mas simultaneamente elegante. É um vinho de grande complexidade e persistência, que nos toca a alma e nos faz querer voltar ao copo, uma e outra vez. Um verdadeiro privilégio poder apreciá-lo.
Já agora, partilhar um episódio curioso. Da primeira vez que o provei (a primeira edição foi a de 2009, seguida da de 2011) fiquei tão impressionada, que tomei uma decisão impulsiva, mas acertada, relativamente a um livro de vinhos que já tinha fechado e estava pronto para seguir para a gráfica: retirei um dos vinhos da seleção desse livro e substitui-o por este. Simplesmente senti que não podia deixar de o incluir e ainda hoje não estou arrependida.
Apesar do Casa da Passarella Vindima ter sido a estrela do dia, durante a apresentação foram ainda dados a provar dois brancos da gama Vila Oliveira, cada um com a sua particularidade. Dois brancos que evidenciam a elegância e profundidade que o Dão pode oferecer, num terroir de altitude e solos graníticos.
O Vila Oliveira Encruzado 2022 provém de várias parcelas, num blend pensado para alcançar equilíbrio entre acidez e volume. O clima de montanha e o solo granítico marcam o perfil do vinho. Iniciou a fermentação com curtimenta e terminou-a em barricas de carvalho usadas de 600 litros, onde também estagiou. O vinho fez fermentação maloláctica quase total e permaneceu em borras totais até ao engarrafamento.
Apesar do carácter naturalmente neutro da casta, este Encruzado abdica dos aromas primários em prol da textura e profundidade. O aroma mostra leve redução, perfeitamente integrada, e na boca revela untuosidade, frescura e grande complexidade.
Lançado pela primeira vez em 2010 com apenas 1.500 garrafas, o vinho tem vindo a afirmar-se, atingindo em 2022 uma produção de 4.500 garrafas. Este ano, foi já distinguido três vezes pela ViniPortugal, confirmando a sua relevância entre os brancos de referência nacionais.
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Já o Vila Oliveira Uva Cão 2021 revelou-se um branco de grande interesse e singularidade. A casta Uva Cão, rara e exigente, tem sido objeto de estudo por Paulo Nunes desde 2012, em colaboração com o Centro de Estudos Vitivinícolas. Em 2014, foi plantada uma vinha na Casa da Passarella com 62 clones diferentes da casta, permitindo uma observação aprofundada do seu comportamento e potencial. «Trabalhar com esta diversidade é muito interessante e revelador, permitindo-nos estudar e descobrir quais os melhores clones para o futuro».
O primeiro vinho desta casta foi lançado em 2018 sob a gama experimental Fugitivo, e os resultados encorajadores levaram à sua promoção para a gama principal Villa Oliveira agora em 2021. Esta colheita foi vinificada em partes iguais entre cuba de cimento e barricas de carvalho de 500 litros, onde também estagiou. O resultado é um vinho de acidez firme, mineralidade pronunciada e uma estrutura que aponta para grande longevidade.
Embora pouco expressiva no nariz, a Uva Cão distingue-se pela sua frescura e tensão, revelando-se mais na boca do que no aroma. Foram produzidas apenas 2.500 garrafas. O trabalho de recuperação e valorização desta casta é, sem dúvida, um dos projetos mais consistentes da Casa da Passarella, e uma aposta que, em anos excecionais, ganha lugar de destaque na colecção Villa Oliveira.
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