Crónica

Um vinho vestido de arte

Já não é novidade que o vinho e a arte caminham lado a lado, mas a tendência tem crescido de forma evidente. Uma das casas mais recentes a juntar estes dois mundos foi a Casa Ermelinda Freitas, que apresentou o Destemido, um novo vinho em edição limitada que se une à visão contemporânea da designer e artista plástica Olga Noronha. O vinho foi lançado na adega da produtora há já alguns meses, mas voltou agora a ganhar destaque numa apresentação no MUDE – Museu do Design.

Conheço e acompanho a Casa Ermelinda Freitas desde os seus primeiros dias (e eles a mim; ainda jornalista imberbe!). Tudo começou no final da década de 90, quando Leonor Freitas decidiu assumir o negócio de família e passar a engarrafar os vinhos que antes a sua família vendia a terceiros. Era um tempo de incertezas, em que a marca dava ainda os primeiros passos para se afirmar no mercado. Mas a paixão, a consistência e a visão de Leonor Freitas deram frutos. Hoje, passadas décadas de trabalho e reconhecimento, a casa tornou-se numa referência sólida, uma marca popular, premiada internacionalmente, sinónimo de qualidade e confiança do consumidor.

Mas este vinho, o Destemido, vai um pouco mais além, revelando-se um topo de gama que eleva a produtora a um patamar muito exclusivo na qualidade e na expressão artística. Uma outra dimensão, com uma boa dose de ousadia, sobretudo se pensarmos que surge no topo de um portefólio dominado por vinhos de grande consumo, com alguns vinhos premium pelo meio, incluindo o emblemático Leo d’Honor (um dos vinhos de Castelão de que mais gosto) como referência máxima (até agora)!.

Numa casa onde as mulheres têm tido um papel de grande destaque, o Destemido chega também com uma missão emocional de homenagear um homem, Manuel João de Freitas Júnior, marido de Dona Ermelinda (que dá nome à marca) e pai de Leonor, que com o seu espírito destemido deu muito de si ao negócio. Visionário e incansável, percorreu Portugal de bicicleta desde muito jovem, fazendo muitos sacrifícios para impulsionar o projecto familiar. Foi um verdadeiro pioneiro, com uma mente aberta e coragem para sonhar. Este vinho é, por isso, mais do que um produto, é uma narrativa familiar, um tributo a um homem que ousou desafiar o impossível e abriu caminhos que a filha viria a concretizar.

A garrafa, limitada a 2025 exemplares, é um objeto de colecionador, uma peça de arte. A prestação de Olga Noronha acrescenta uma dimensão visual e conceptual que ultrapassa o lado estético. A artista, com reconhecimento internacional, doutorada pela Goldsmiths College, em Londres, e com obras em instituições como o MUDE, o Museo del Gioiello Vicenza ou a Fundação de Serralves, imprime nesta edição uma identidade muito própria. A intervenção não é apenas decorativa, já que prolonga o conceito do vinho e espelha o espírito destemido que lhe dá nome.

No plano enológico, o vinho não fica atrás. É elaborado a partir das castas Castelão, Syrah, Alicante Bouschet e Cabernet Sauvignon, vindimadas no final de Setembro nas vinhas de Fernando Pó, no concelho de Palmela, um território privilegiado, de solos arenosos. A fermentação ocorre em cubas-lagar de inox, com temperatura controlada, seguida de três semanas de maceração pelicular, que lhe conferem corpo e complexidade. Estagia 12 meses em barricas de carvalho francês e americano e mais 24 meses em garrafa. O resultado é um vinho profundo, com grande capacidade de guarda, capaz de envelhecer por várias décadas. Com 14,5% de álcool, pede pratos intensos e estruturados. Um vinho de memória, de homenagem e de vanguarda. Um vinho vestido de arte.